O som do filme enche o salão com uma toada ritmada, vinda das entranhas dos remadores dos barcos que sulcam o rio da história do primeiro amor de Harriet. No ecrã sucedem-se as imagens que Jean Renoir compôs durante o ano de estadia na Índia em que com «O Rio Sagrado» registou a celebração hindú dos ciclos da vida e da morte e desenhou quadros inspirados pelas revelações do primeiro amor e pela luz em Calcutá.
Radha, a bailarina, dança para o noivo, transformado no deus Krishna. O olhar negro dela, sublinhado a carvão, e o movimento delicado do corpo mas sobretudo das mãos falam da partilha das pequenas coisas, que transcendem a sua natureza, simples, por via do amor.
Nascido em França durante a Belle-Époque - fixada pelo pai, Auguste Renoir, nalgumas das suas telas impressionistas mais inspiradas - Jean Renoir era já um cineasta consagrado quando, em 1947, quis fazer um filme sobre a Índia. O homem que aos oito anos descobriu que gostava de cinema e aos 60 declarou ter descoberto que gostava da humanidade, não pensava ainda deixar os EUA para regressar à Europa quando um acaso o fez ler no «New Yorker» a crítica a uma obra de uma escritora inglesa: Rumer Godden. Dizia que era um dos melhores romances escritos em inglês nos últimos cinquenta anos. Também acrescentava que provavelmente não faria um tostão junto do público. Isso foi o suficiente para que Renoir o comprasse e se convencesse que ali havia um grande tema cinematográfico. Godden cedeu-lhe os direitos para a transposição para cinema e quando Renoir explicou que não era uma história que pudesse ser filmada, desafiando-a a reescrevê-la com ele, anuiu.
O projecto não era, porém, fácil de realizar. Hollywood deixou de arriscar em obras do cineasta francês após a primeira versão de «A Mulher Desejada», de 1946, ter sido mudada por exigência da censura e o filme ter sido recebido com frieza pelo público. O grande Renoir não conseguia que ninguém se interessasse pelo projecto. «Se era sobre a Índia, onde estavam os marajás e os tigres», perguntavam-lhe…
Entretanto, o norte-americano Kenneth McEldowney, florista e agente imobiliário com meios financeiros, sonhava em produzir um filme sobre a Índia. Num encontro, fruto do acaso, com a sobrinha do Pandit Nehru, esta alertou-o para o risco que era para qualquer ocidental filmar temas indianos. Dadas as diferenças culturais, o mais provável era retratar falsamente esse país. Falou-lhe da obra de Rumer Godden que ali chegara bebé de meses, crescera aprendendo vários dialectos indianos e conhecia muito bem o território. Quando Kenneth quis comprar os direitos de «O Rio Sagrado» chegou até Jean Renoir e o filme tornou-se finalmente possível.
A obra filmada transpôs os muros da casa de Harriet e da sua família inglesa. Deixou de ser, como no livro, «O Rio Sagrado» da Índia que penetra na esfera da intimidade de uma família inglesa para ser o da Índia a cumprir o ciclo da vida na sua comunhão com a natureza.
As imagens sucedem-se mansamente e a acção – quase um pretexto para desvendar a atitude hindú relativamente à morte e à ressurreição e assim sustentar o tema da «aceitação» – vai-se desfiando ao ritmo das estações, tão suave na transição mas que se revela na natureza com tanta intensidade que os homens criaram rituais de passagem para mimetizar tanto o colorido e o perfume da floração como a força das chuvas, que ora perfumam oram tumultuam as margens do Ganges. É o mistério da vida que o rio guarda no seu âmago, metáfora da ressurreição e da fluidez com que a morte sucede à vida e o riso alterna com o choro, com o amor – o amor-próprio, o amor pelo outro, o amor filial, o amor sensual – a criar turbulências e a potenciar o desejo de vida e de morte e, às vezes, o sentimento de desajustamento.
Porque «O Rio Sagrado» também é sobre o ser-se estrangeiro, no seio da família, no da sua comunidade ou do seu país.
Harriet/Rumer Godden (não haja dúvidas, esta é uma obra autobiográfica), a adolescente que incorpora os princípios do hinduísmo e se entrega à sensualidade desta cultura milenar - numa atitude contrária à da comunidade britânica residente na Índia que, com a sua cultura mais recente mas materialmente hegemónica, toma a outra por inferior – sofre com a sua diferença. A sua sensibilidade apurada apressa-a no querer ser mulher e exige o reconhecimento do seu talento poético e a valorização dos seus sentimentos.
Por sua vez Melanie, a mestiça, filha de um americano e de uma indiana, sente-se dividida entre as duas culturas e questiona-se sobre se conseguirá integrar-se nalguma delas.
E, finalmente, o Capitão John, o soldado que perdeu a perna combatendo pelos EUA na II Guerra Mundial – tal como Jean Renoir ficou coxo após um ferimento recebido na Grande Guerra – cuja chegada assinala o fim da infância para as três adolescentes do filme, que disputam a atenção dele. O ex-soldado não aceitou ainda a deficiência que o faz sentir-se desajustado em todos os lugares, deixando cego à intensidade da regeneração e beleza da vida ao seu redor.
A Índia e a sua filosofia, de aceitação – que Renoir integrou como tema dos seus filmes posteriores – dos sucessos do mundo, sem fatalismo e sem expiação, marcaram Harriet sobretudo (mas também as personagens referidas) tal como o próprio cineasta e a escritora foram marcados, durante a escrita e rodagem, pelo país e muito concretamente por Radha, a indiana que interpreta Melanie. Uma rapariga extremamente culta, com um mestrado em sânscrito, mas também conhecedora da cultura ocidental, colaborou com extraordinária inteligência, enaltecida pelo próprio Renoir, no processo de construção de um filme que tem tanto de documental quanto de ficcional.
Da multiplicidade de acasos e sensibilidades cruzadas neste encontro de uma cultura mais recente e menos espiritual com outra mais antiga nasceu um dos mais belos títulos da história do cinema que celebra o milagre da existência. Trata-se de um filme de amor à vida que despertou ou reafirmou em muitos o amor pelo cinema e a convicção de que a arte ajuda a enformar a sensibilidade do público. O realizador Martin Scorcese – que esteve por detrás do restauro da cópia que a «Criterion» editou recentemente em DVD e que devolveu ao filme toda sua cor – assume que este «é um dos dois filmes mais belos alguma vez realizados» e que para si vê-lo foi «uma das experiências cinematográficas mais formativas».
A intemporalidade de «O Rio Sagrado» radica no ser fruto de uma meditação ocidental inspirada por uma filosofia antiga que assume que a vida continua para além de todo o Bem e todo o Mal engendrados. O olhar de Renoir e de Godden, contaminado pelo de Radha e o de todos os colaboradores indianos que ajudaram a fixar esta imagem intemporal da Índia e da fluidez da existência, transmite paz e beleza. Num momento em que, sob a atenção ocidental, o confronto de duas culturas milenares - a árabe e a judia – extrema posições e espalha a morte no Médio Oriente, este «O Rio Sagrado» podia bem ser um hino à partilha e ao entendimento.
segunda-feira, outubro 23, 2006
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