sábado, dezembro 16, 2006

epifânia ii

Quantas cidades foram já cenário da vida a arrebatá-los nos encontros em que a cumplicidade os devolve um ao outro, suspendendo as outras existências em que são estranhos?
Desta vez quer fixar o instante do reencontro. Como se estivesse por detrás da câmara de filmar embora seja simultaneamente a heroína da história que os faz errar como dois amantes virtuais em paisagens reais, buscando um espaço próprio nos interstícios de um tempo de que não se apoderaram. Ainda.
À excitação no antecipar a vibração do corpo no encontro com o do outro junta-se agora esta vontade do concreto. Ele agora também entra nos sonhos que Maria tem na outra vida. Às vezes a manhã acorda-a sobressaltada e triste, sem a presença de Álvaro para serená-la após um sonho de perda.
No quarto de hotel, a custo, desloca a cama arrastando-a. Vira os pés para a porta. E o sol, nascente, banha os lençóis que ela então abre. Despe o vestido vermelho e entra, devagarinho, com gosto, para dentro do refúgio fresco. Cerra os olhos.
Um ano antes, Álvaro sussurrara-lhe ao ouvido: «e se eu te dissesse que és a mulher da minha vida?». A tarde caía então, num rosa forte a tingir a paisagem. À surpresa do olhar, estranho e por isso desentorpecido ainda, dos recém-chegados sobre a cidade, juntava-se o agrado com a profusão de aromas desprendidos pelas flores naquele instante em que o ar morno convocava já a noite. Aqui a terra é vermelha e funda, cheia de vida. Os formigueiros são chaminés altas crepitando de actividade.
O homem e a mulher estão de volta a Brasília mas naquela manhã distante tinham partido na miragem da descoberta de terras com sedimentos de histórias mais antigas que as da capital do Brasil.
Estrada fora, porém, o que viram primeiro foi o alinhamento das barracas dos operários que não tinham tido para onde regressar. A cidade fora desenhada para eles. Isso foi antes de serem desalojados por quem têm o poder que o dinheiro dá e sucumbiu à miragem de disciplina no espaço de onde os edifícios esguios se perfilaram, despejada que fora entretanto a floresta.
Nos arredores da cidade, a pobreza generalizada assombra, por quilómetros e quilómetros, a beira da estrada que se tornou casa precária e mercado onde tudo se vende. Esta economia participa num movimento vibrante e alargado de regeneração permanente. O negócio em torno do desejo anuncia-se na sucessão de móteis que convocam à satisfação do desejo com frases onde a imaginação não busca eufemismos e serve a urgência dos corpos.
Ao longo da viagem, o casal inventou palavras novas para nomear as terras da sua fantasia defraudada. Nessa confirmação do gosto pela busca feita a dois riram do engano. De regresso, o encantamento que buscaram fora surpreendeu-os, enfim, no jardim da Biblioteca Central.



O edifício, rasgado por grandes janelas banhadas de luz, convida ao estudo. De momento, porém, eles saboreiam o prazer de não fazer nada, assumido dois dias antes, após o desastre da recepção, à chegada, noite avançada de um cansaço longo acumulado em mais de meio-dia de viagem.
Que o hotel estava cheio e como já não os esperavam, tão tarde, cancelaram a reserva dos quartos, dissera-lhes uma senhora, muito elegante mas sem vontade de ajudar, da organização. De nada valera reclamar que a hora da sua chegada era a prevista pelo horário do voo marcado por quem os convidara. Vieram para participar numa conferência sobre a cooperação possível na produção de cinema entre países ibéricos e latino-americanos, promovida paralelamente ao festival local.
O homem saiu porta fora e a segurança dele arrastou-a. Estavam no quarteirão dos hotéis na parte norte da cidade. Em algum haveria quarto.
Quando o começou a conhecer, Álvaro era-lhe um corpo estranho com uma sensibilidade que Maria partilhava.
Adivinha muitas vezes o que ele quer dizer e antecipa-lhe, em gestos, as vontades mal formuladas ainda. Ele espanta-se mas ela sabe que isso nada tem de extraordinário. Leu-o à luz das afinidades que partilham. E tem prazer em satisfazê-lo.
Naquela tarde em que o sol se pôs embalado pelo canto dos pássaros, amplificado pelo avanço manso da lua, Maria já sabia que era a mulher desse estrangeiro. Entregou-se ao sentimento e ao desconhecido. O amor deles é vivido ao sabor de uma geografia de encontros ditada pelo acaso. No quotidiano, conhece de cor a ânsia da reunião dos corpos. A alma, sabe que está em Madrid, algures pela Castellana, onde quer que Álvaro cuide do amor por ela.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

epifânia

Abriu a porta do 907, a sorrir, antecipando o agrado dele. É uma superstição de Álvaro, a dos números da sorte, e ela aderiu ao jogo como uma menina seduzida pela irresistibilidade da brincadeira nova.
Junto às portas de correr, de acesso à varanda, espreitou a vista sobre Brasília. Invadiu-a o dejá vu. Um ano antes compusera aqueles mesmos gestos…
A vida lá em baixo corre distante, mais ou menos alinhada, segundo a ordem que Óscar Niemeyer, amante declarado do caos do Rio de Janeiro, arquitectou. Mas ela sabe que, à noite, junto ao Naoum, o tráfico dos corpos desafia o arranjo das ruas, rasgadas a direito, onde foi domesticada a vegetação.
O encontro está marcado para o fim do dia mas Maria chegou pela manhã. Quis ficar à espera, na antecipação dos passos a deslizarem no corredor, o bater suave dos dedos na porta, a voz dela a dizer «entra» e ele a transpor a porta. Fixá-la-á mansamente, o olhar azul profundo a percorrê-la com vagar e o sorriso manso a traçar-lhe rugas pequeninas junto aos lábios que ela gosta sobre tudo no rosto marcado dele.