terça-feira, maio 15, 2007
Dez, de Kiarostami
Em «O Vento levar-nos-á», a obra anterior de Abbas Kiarostami, há uma sequência singela que antecipa «Dez». O protagonista - que acompanha uma aldeia na espera pela morte de uma velha mulher - vai comprar leite a uma bela jovem. E ao vê-la repetir gestos ancestrais, diz-lhe um poema (cujo título dá nome ao filme) de uma iraniana que ousou reclamar a liberdade: Forugh Farrokhzad.
Após os filmes sobre a lealdade do seu povo a formas de existência antigas, que ainda perduram (numa convivência difícil mas resistente) sobre as regras impostas pela ditadura, Kiarostami aborda agora mais incisivamente o constrangimento a que estão sujeitas as compatriotas - a amputação do eu numa forma de organização social sustentada pelo fundamentalismo religioso.
Ao jeito de «O Sabor da Cereja», «Dez» é um «road-movie» - desta vez sobre a mulher que conduz o carro em que decorre a acção. Esta é fixada quase integralmente por duas câmaras digitais apontadas para os bancos do condutor e do passageiro do lado. Enquanto o carro percorre as ruas, a intimidade com o espectador desponta na fixação do posicionamento da condutora relativamente à família, à religião, à amizade, ao sexo e ao amor, pelo registo do relacionamento com o filho, a irmã e as amigas e das conversas com uma velha crente e uma prostituta (cujas imagens são escamoteadas e cujas vozes surgem quase como um eco de diálogo interno da protagonista) a quem transporta.
Divorciada e casada pela segunda vez, ela parece buscar a confirmação da bondade do seu comportamento. Reclamando sempre o direito ao livre-arbítrio e ao amor-próprio, angústia-se, porém, com a amargura de se ver renegada pelo filho que a acusa de egoísmo e mentira e com o fantasma da dúvida sobre a lealdade do novo marido, membro de uma sociedade que exige que a mulher honre o homem mas não o contrário.
Kiarostami, que optou por resistir ao regime iraniano a partir de dentro e através da denúncia documentada, mantém a capacidade de prosseguir o desafio criativo às normas complexas que regulam a vida (e neste caso particular da censura à captação da imagem humana) no Irão. Como epílogo da reflexão sobre o amor entre homens e mulheres, ele filma a cabeça rapada de uma mulher abandonada pelo noivo.
Com este gesto ela fez secar as lágrimas de tristeza, explica à amiga condutora. Com esta imagem, o cineasta contorna a regra da censura que prevê que nenhuma mulher possa retirar o véu e revelar o cabelo à câmara.
«Dez» é um filme de cumplicidade com a luta das mulheres iranianas e podia ser uma dedicatória à poetisa, actriz e cineasta Forugh Farrokhzad, desaparecida precocemente na década de 60, após um renascimento espiritual alcançado através de um divórcio pelo qual teve de sacrificar a custódia do filho e que só quase no fim de uma existência atalhada por um acidente de automóvel conseguiu ser feliz no amor.
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