terça-feira, outubro 30, 2007

Improvisos


"Bebeu o chá de cidreira lentamente, a contrariar a agitação que sentia. Não sabia bem onde estava. Acordara sem consciência de si. O gosto do chá era-lhe familiar. Por sua vez o quarto de paredes altas, quase despido de móveis, dominado pela beleza de um ícone em que figurava a Virgem com o menino, devolvia-lhe a reminiscência de uma tarde quente, de Verão, e de um diálogo íntimo, olhos nos olhos, com a imagem.
Nenhum som no interior da casa. Era sólida, rasgada a branco na paisagem, e tinha dois pisos. Alongava-se através de um casario, baixo.
O piso inferior era quase integralmente ocupado pela cozinha onde o ocre amarelo das paredes só era quebrado pelo branco, sujo pela fuligem, no interior da enorme chaminé e pelo arco desenhado a tijolo burro que dividia o espaço. Era aí que estava rebuscando lembranças.
Na mala encontrou uma carteira. Nela, o bilhete de identidade dizia-lhe que se chamava Raquel Amendoeira. Tinha 27 anos, era natural da Cruz Quebrada, solteira. A estranheza aprofundou-se. As memórias desconexas que tinha eram curtas para o que precisava de saber sobre si mas sobravam elementos que não eram explicados pela definição, tão objectiva de si, que lhe dava aquele cartão onde uma fotografia de mulher – a sua – sorria, pouco à vontade. Olhos e cabelos negros definiam a cara, dominada por um olhar firme, incisivo. A pele era morena e os lábios bem desenhados.
No hall de entrada da casa o bengaleiro tinha vários casacos de mulher e de homem, dependurados. Chapéus de palha, um boné de burel, alguns gorros de lã coroavam o topo do bengaleiro. Eram roupas e acessórios práticos, rurais, para abrigar do sol e da chuva. Revelavam uma existência pouco mundana.
Saiu para a pequena alameda, dominada pelos aloendreiros e pelo cheiro a figos, já em decomposição, das figueiras defronte do monte, que o Outono despia então de folhas. Na extremo do casario, estava um carro velho estacionado. Não fixava nunca marcas de carros mas soube que este era o seu. Conheceu-o instintivamente tal como à gata preta que veio imediatamente a correr para si e se roçou pelas suas pernas.
Pela primeira vez nesse dia a felicidade sobrepôs-se à estranheza que sentia. Aceitou a relação, íntima, que lhe foi revelada. A frescura da noite perdurava ainda mas os pássaros trinavam enquanto o calor do sol se ia intensificando nesse dia de um Outubro a terminar."

2 comentários:

José da Costa Ramos disse...

Raquel Amendoeira sem memória não existe. Por isso serve-se daquilo que está à mão para existir - dos pequenos detalhes que a rotina apaga- do aqui e agora. Essa "inocência" ao mesmo tempo dá novos sentidos ao contexto abre para as possibilidades da morte - a perda da memória - e da vida como ciclo e permanência.

Tudo isto dito é dito sem complicar como eu estou fazendo ;)

MCP disse...

Eu existo sem os detalhes do nosso mundo partilhado. Mas em duas dimensões perco o fulgor.