quinta-feira, novembro 30, 2006

7 de Agosto


Abri a janela do quarto, no gesto quotidiano tornado rotina, a sacudir o ligeiro torpor matinal para deixar entrar restos da frescura nocturna. No prado que brilhava contra o azul do céu límpido de tão seco pelo estio, as ovelhas já estavam recolhidas à sombra do sobreiro, de braços largos e erguidos como uma mão, desenhada por podas humanas.
Desci as escadas, pus a água para o chá ao lume e sai para a rua, a apanhar os figos para o pequeno-almoço. Na mesa, junto ao tanque da rega, dispus o mel e a manteiga, amoras e figos frescos, o pão amassado e cozido semanalmente no forno a lenha e servi a tisana, de erva-cidreira. A pele arrepiou-se-me levemente, tocada pela brisa do amanhecer mas quando visitei o jardim, banhado pelo sol, já sabia que este seria um dia quente, como tantos outros dos cinco Verões vividos na casa do Monte da Quinta.
Verifiquei a rega do jardim de aromáticas e roseiras que fui plantando ao ritmo da sucessão das estações do ano. Deixei-me ficar um instante, absorvendo o calor até este se me tornar insuportável, e mergulhei no interior do velho mosteiro, com paredes em xisto ligado com terra e cal e que compõe uma barreira gorda aos rigores do clima alentejano.
Sento-me no sofá verde, junto à porta virada para a varanda suspensa sobre a entrada. Ligo o portátil e começo a escrever. As portadas estão semicerradas e permaneço alheada dos outros gestos que me ligam à terra e cuja coreografia aprendi aqui, fazendo.
Gosto de escrever. Gosto de trabalhar as palavras. Escrevo argumentos para filmes que se passam em cidades. Quase ninguém se interessa por histórias passadas no campo.
O som do relógio de parede, que marca a cadência, ritmada, da passagem do tempo, entrosa-se com o do teclar, enquanto as frases flúem, compondo existências fora da serenidade desse instante, distantes deste ascetismo.
Um olhar de relance pela janela e vejo uma coluna de fumo negro que se ergue, enorme, por detrás dos montes que confinam o prado. Ergo-me de um pulo, pego no telefone e, com as mãos a tremer, ligo o 112. A voz sai descontrolada, como se me fosse estranha. «Há fogo na Serra d’Ossa».

1 comentário:

JPN disse...

já te disse: na tua escrita o mais importante não é gostares de escrever, mais a forma como parece que as palavras gostam de serem escritas por ti. o tempo, o tempo de ter tempo, o tempo de estar disponível para o tempo, é uma das formas mais intensas de cultivarmos a beleza, a nossa possibilidade. bj