domingo, maio 20, 2007

A Paixão segundo Dreyer

«A Palavra» convoca a magia do Verbo original e criador. A mulher é princípio gerador de vida e o amor é a essência da existência humana. Obra-prima mística de Carl Th. Dreyer, não pressupõe a crença em Deus mas a disponibilidade para integrar como divinas todas as revelações do mundo.


Em 1930, na Dinamarca, o velho lavrador luterano Morten Borgen vive na companhia dos filhos, Anders, Johannes e Mikkel. Anders está apaixonado pela filha do alfaiate local, que lhe recusa Ana por divergências religiosas. Johannes inquieta todos com um misticismo que se lhe toldou a razão e o faz julgar-se o Cristo contemporâneo. Quanto a Mikkel não tem fé mas tem amor por Inger, a mulher, que lhe enaltece a bondade do coração.
Inger. É ela quem vela pelo bem-estar de todos mas se lhe é fácil garantir as condições materiais da felicidade deles não consegue sanar os preconceitos dos homens da casa, agitados pelas paixões mundanas e pela (des)crença intolerante.
Ao princípio era o Verbo. Depois Deus criou o céu e a terra. O homem espalhou-se pelo mundo, remeteu o Criador para o Paraíso, e definiu liturgias para mediar a relação com o divino. O poder da palavra foi enfraquecendo, desacreditado pelas convenções e a Fé, tornados dogma.
Mas o Deus de Carl Th. Dreyer, o realizador de «A Palavra», é, afinal, o das pequenas coisas. É de celebração da existência. E a palavra, essa, é geradora. Como a mulher, fixada sempre pelo cineasta dinamarquês como luz e princípio de vida.
Na obra-prima de 1955 – a penúltima do cineasta – natural e sobrenatural contaminam-se e o amor impõe-se – postulado no plano religioso após noutras obras ter sido metáfora laica – como condição essencial da existência. A mise en scène, essa, é ascética. Foi essa a via que o realizador seguiu para «materializar» a espiritualidade e em cenários desenhados com luz e sombras fazer brilhar a expressividade do rosto humano e dar protagonismo à emoção das personagens.

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