segunda-feira, maio 21, 2007

Direito a habitar no 25 de Abril

DVDteca ideal

O Rio (The River) – (Jean Renoir, 1951) The Criterion Collection
A Palavra (Ordet) – (Carl Th. Dreyer, 1955) The Criterion Collection
O Leopardo (The Leopard) – (Luchino Visconti, 1963) – The Criterion Collection
Colecção Stanley Kubrick
Narciso Negro (Black Narcissus) – (Michael Powell, Emeric Pressburguer, 1947)
Pack O Padrinho
Os Sete Samurais (The Seven Samurais) – (Akira Kurosawa, 1954) The Criterion Collection
Box Alfred Hitchcock X6
O Sétimo Selo – (The Seventh Seal) – (Ingmar Bergman, 1957) The Criterion Collection
A Story of Floating Weeds/ Floating Weeds – (Yasujiro Ozu) The Criterion Collection
Andrei Rublev – (Andrei Tarkovsky, 1966) The Criterion Collection
Ugetsu (Contos da Lua Vaga Depois da Chuva) – (Kenji Mizoguchi, 1953) The Criterion Collection

domingo, maio 20, 2007

A Paixão segundo Dreyer

«A Palavra» convoca a magia do Verbo original e criador. A mulher é princípio gerador de vida e o amor é a essência da existência humana. Obra-prima mística de Carl Th. Dreyer, não pressupõe a crença em Deus mas a disponibilidade para integrar como divinas todas as revelações do mundo.


Em 1930, na Dinamarca, o velho lavrador luterano Morten Borgen vive na companhia dos filhos, Anders, Johannes e Mikkel. Anders está apaixonado pela filha do alfaiate local, que lhe recusa Ana por divergências religiosas. Johannes inquieta todos com um misticismo que se lhe toldou a razão e o faz julgar-se o Cristo contemporâneo. Quanto a Mikkel não tem fé mas tem amor por Inger, a mulher, que lhe enaltece a bondade do coração.
Inger. É ela quem vela pelo bem-estar de todos mas se lhe é fácil garantir as condições materiais da felicidade deles não consegue sanar os preconceitos dos homens da casa, agitados pelas paixões mundanas e pela (des)crença intolerante.
Ao princípio era o Verbo. Depois Deus criou o céu e a terra. O homem espalhou-se pelo mundo, remeteu o Criador para o Paraíso, e definiu liturgias para mediar a relação com o divino. O poder da palavra foi enfraquecendo, desacreditado pelas convenções e a Fé, tornados dogma.
Mas o Deus de Carl Th. Dreyer, o realizador de «A Palavra», é, afinal, o das pequenas coisas. É de celebração da existência. E a palavra, essa, é geradora. Como a mulher, fixada sempre pelo cineasta dinamarquês como luz e princípio de vida.
Na obra-prima de 1955 – a penúltima do cineasta – natural e sobrenatural contaminam-se e o amor impõe-se – postulado no plano religioso após noutras obras ter sido metáfora laica – como condição essencial da existência. A mise en scène, essa, é ascética. Foi essa a via que o realizador seguiu para «materializar» a espiritualidade e em cenários desenhados com luz e sombras fazer brilhar a expressividade do rosto humano e dar protagonismo à emoção das personagens.

O sentido da vida

Retrato da inquietude de um homem que vive a decadência de costumes da Roma do boom económico pós II Guerra Mundial e o espectro da ameaça nuclear, «La Dolce Vita» accionou a viragem do neo-realismo das primeiras obras de Fellini para o triunfo do imaginário «felliniano» sobre o real.




Em 1960 Federico Fellini fez da Via Veneto, a avenida romana de clubes nocturnos e esplanadas, o cenário de uma obra de viragem na sua carreira, «La Dolce Vita». Marcello Mastroiani – o eterno alter ego de Fellini – foi cicerone num filme sobre as noites vazias e as alvoradas tristes de uma «doce vida» plena de inquietude.
Marcello é jornalista e cobre a chegada a Roma de Sylvia, uma estrela de cinema. Segue-a por todo o lado, consumido pelo desejo por ela, buscando a essência da Mulher, que se lhe mantém inacessível. O clímax da busca acontece dentro da Fonte Trevi com Anita Ekberg em todo o seu esplendor, desafiando a moral e o desejo de todos os homens do mundo no banho que se tornou símbolo da obra cinematográfica.
Mas as noites sucedem-se e, com elas, os encontros e desencontros. Marcello é sempre mais espectador do que actor nos cenários extravagantes dispostos por Fellini enquanto mergulha num deboche que não é mais do que a face visível do seu desespero.
O centro do filme é o encontro com Steiner, que o jornalista admira. Steiner tem uma mulher bela, dois filhos e vive num apartamento cheio de obras de arte, onde é anfitrião de poetas, músicos e outros intelectuais. É um simulacro de vida perfeita que o suicídio do homem desmente depois.

À Bolina


"Na Quinta da Serra existe um projecto que se chama À Bolina. È lá que estão inscritos mais de metade dos meninos da Quinta da Serra e passam o tempo a fazer os trabalhos de casa, a brincar e a divertir-se. Este projecto está a decorrer desde Dezembro. Este projecto serve para os alunos recuperarem as notas e até já recuperaram imensos alunos desde que começou." (...) É assim que a Ana Francisca, uma das meninas com que trabalhamos, descreve o À Bolina, um Escolhas do ACIDI, a operar no Bairro da Quinta da Serra, no Prior Velho. É lá que estou diariamente a recolher textos e imagens dos meninos deste bairro de barracas. O desenho é do Junilto Netchemó, de 13 anos, que chegou para tratar uma perna mal curada após uma fractura na Guiné. Dois meses e três cirurgias depois no Hospital Dona Estefânia, o Junilto sorri com mais confiança. Talvez não recupere o movimento do joelho mas talvez tenha conseguido salvar a perna.

terça-feira, maio 15, 2007

Dez, de Kiarostami


Em «O Vento levar-nos-á», a obra anterior de Abbas Kiarostami, há uma sequência singela que antecipa «Dez». O protagonista - que acompanha uma aldeia na espera pela morte de uma velha mulher - vai comprar leite a uma bela jovem. E ao vê-la repetir gestos ancestrais, diz-lhe um poema (cujo título dá nome ao filme) de uma iraniana que ousou reclamar a liberdade: Forugh Farrokhzad.
Após os filmes sobre a lealdade do seu povo a formas de existência antigas, que ainda perduram (numa convivência difícil mas resistente) sobre as regras impostas pela ditadura, Kiarostami aborda agora mais incisivamente o constrangimento a que estão sujeitas as compatriotas - a amputação do eu numa forma de organização social sustentada pelo fundamentalismo religioso.
Ao jeito de «O Sabor da Cereja», «Dez» é um «road-movie» - desta vez sobre a mulher que conduz o carro em que decorre a acção. Esta é fixada quase integralmente por duas câmaras digitais apontadas para os bancos do condutor e do passageiro do lado. Enquanto o carro percorre as ruas, a intimidade com o espectador desponta na fixação do posicionamento da condutora relativamente à família, à religião, à amizade, ao sexo e ao amor, pelo registo do relacionamento com o filho, a irmã e as amigas e das conversas com uma velha crente e uma prostituta (cujas imagens são escamoteadas e cujas vozes surgem quase como um eco de diálogo interno da protagonista) a quem transporta.
Divorciada e casada pela segunda vez, ela parece buscar a confirmação da bondade do seu comportamento. Reclamando sempre o direito ao livre-arbítrio e ao amor-próprio, angústia-se, porém, com a amargura de se ver renegada pelo filho que a acusa de egoísmo e mentira e com o fantasma da dúvida sobre a lealdade do novo marido, membro de uma sociedade que exige que a mulher honre o homem mas não o contrário.
Kiarostami, que optou por resistir ao regime iraniano a partir de dentro e através da denúncia documentada, mantém a capacidade de prosseguir o desafio criativo às normas complexas que regulam a vida (e neste caso particular da censura à captação da imagem humana) no Irão. Como epílogo da reflexão sobre o amor entre homens e mulheres, ele filma a cabeça rapada de uma mulher abandonada pelo noivo.
Com este gesto ela fez secar as lágrimas de tristeza, explica à amiga condutora. Com esta imagem, o cineasta contorna a regra da censura que prevê que nenhuma mulher possa retirar o véu e revelar o cabelo à câmara.
«Dez» é um filme de cumplicidade com a luta das mulheres iranianas e podia ser uma dedicatória à poetisa, actriz e cineasta Forugh Farrokhzad, desaparecida precocemente na década de 60, após um renascimento espiritual alcançado através de um divórcio pelo qual teve de sacrificar a custódia do filho e que só quase no fim de uma existência atalhada por um acidente de automóvel conseguiu ser feliz no amor.

haiku iii



O raminho de violetas,
Colhido agora junto à ribeira
Perfuma as tuas mãos.

haiku ii


Floriram as amendoeiras.
Os pássaros fazem chamamentos de amor.
Tu, com eles.

quarta-feira, maio 09, 2007

A Violência do Silêncio dos Violinos


«Vai e Vem» foi a derradeira celebração da vida, do cinema e da liberdade por João César Monteiro. Generoso e terno na despedida, o cineasta legou-nos um olhar aberto à beleza do mundo.

«Vai e Vem», a obra póstuma de João César Monteiro, termina com o plano fixo da pupila do cineasta. O olhar, azul, reflecte a velha árvore do Príncipe Real e, durante minutos, fixa-nos ao som de uma peça de canto gregoriano. João Vuvu, aliás João de Deus, aliás Max Monteiro, depois do desaparecimento físico do espectro em que o cancro o tornou, lega-nos o olhar com que buscou a beleza do mundo.
A sua dádiva — após as quase três horas que dura a derradeira celebração da vida e do cinema enquanto possibilidade de realização da liberdade criativa de que o autor de «As Recordações da Casa Amarela» não abdicou nunca – não resolve, porém, em nós a violência do silêncio que a morte lhe impôs. E se, ao contrário da obra precedente, a adaptação da «Branca de Neve» – obra ao negro em que a imagem cedeu o protagonismo à palavra —, este é um filme luminoso, «Vai e Vem» faz o equilíbrio perfeito entre uma e outra.
João Vuvu, viúvo, com um filho na cadeia por assalto à mão armada e duplo homicídio, vive em casa própria num bairro antigo de Lisboa. Misantropo, os seus companheiros são a música e os livros. Sai diariamente para um passeio no autocarro nº 100 que o transporta entre a Praça das Flores e o Jardim do Príncipe Real. De regresso a casa, a qual requer os préstimos de uma mulher-a-dias, Vuvu recebe as candidatas que satisfazem a lascívia do velho senhor mas não têm as competências por ele determinadas em anúncio. A saída do filho da prisão e o desejo de regeneração anunciada fazem manifestar-se a índole criminosa de Vuvu, condenando-o definitivamente a um destino à margem da comunidade. Deste movimento contínuo — os pequenos incidentes no 100 e as aventuras domésticas geradoras de um vai e vem de raparigas — nos dá conta o filme.
A lucidez serena que atravessa toda a obra torna mais acutilante a ironia com que Monteiro ilumina as suas visões sobre política, religião e cultura. Diálogos escritos com uma qualidade rara, ditos com simplicidade. E que fazem rir. Como aquele em que após Vuvu dizer um soneto, a candidata a empregada lhe pergunta «É do camarada Saramago?» e ele responde «Não. É do cavalheiro Camões».
Rita Pereira Marques, Rita Durão, Joaquina Chicau, Miguel Borges e a sua actriz de sempre, Manuela de Freitas, são cúmplices nesta criação. Além, claro, dos passageiros do 100 e de uma figura lisboeta, que a todos é familiar e a quem «Vai e Vem» dá nome e idade: o rapaz que arranca ao acordeão acordes desafinados do «Apita ao Comboio» enquanto o seu pequeno cão, ao ombro, uiva no acompanhamento. O espectro de Vuvu a encomendá-lo à vida torna-o, por via do cinema, mais real do que o seu corpo de menino alguma vez no-lo fez ver. Como o corpo de César-actor nos comove, a dançar, trémulo, ao som da orquestra que anima uma das viagens de autocarro. É já uma sombra e, no entanto, a música prende-o à vida e devolve-o ao contacto humano, a que se tornou avesso, na cumplicidade com as velhotas populares.
Para a antecipação da morte em imagens de cinema o cineasta evocou toda a sua beleza e a do mundo que criou para si mas colocou-a, subtil, sobre véus. O da música, clássica e belíssima sempre; o das palavras, irónicas e libertinas, que a erudição poliu e tornou simples; as transparências através das quais filtrou a sua lubricidade para agora já só tactear os corpos das ninfas que desejou.
João César Monteiro aceitou com ironia o fim da vida a que um cancro o arrebatou a 3 de Fevereiro, um dia depois de ter feito 64 anos. Assumiu-a como uma sodomização brutal e consumada e esperou-a no jardim de sempre. Na celebração sensual e terna da vida que é «Vai e Vem» o realizador doa a sua obra aos que lhe são cúmplices e revela uma passagem – o cinema – onde o pudemos encontrar sempre.

terça-feira, maio 08, 2007

O Caimão



Bruno Bonomo era um produtor famoso de filmes B nos anos 70 mas, após um longo interregno na sequência do insucesso comercial de “Cataratas”, só agora volta à actividade com um financiamento da RAI para produzir "O Regresso de Cristovão Colombo". Quando, porém, o autor se despede, não tem alternativa senão propôr o argumento de uma estreante. Entretanto, a vida familiar de Bonomo colapsa. A separação da mulher só não é oficial porque não conseguiram assumi-la perante os filhos. Por isso não se concentrou na leitura do novo guião a ponto de perceber - ele que detesta filmes político de esquerda - que o enredo é sobre o primeiro-ministro italiano e magnata dos média Silvio Berlusconi, em quem votou nas eleições.
Após um filme mais intimista e de plena maturidade emocional, “O Quarto do Filho”, Nanni Moretti volta à sátira política feroz e ao cinema implicado através de uma obra que tanto parodia criticamente o cinema de autor de grande público - e visa directamente Quentin Tarantino e seus “Kill Bill” - como o cinema e televisão em Itália enquanto dispõe um outro filme sobre a ascensão de Berlusconi e que avalia os seus conceitos de entretenimento e “democracia”.
Tal é disposto através da busca do actor que virá a ser o empresário no filme mas também através de imagens de arquivo como as que fixaram o momento em que chamou “capo” (polícia de campo de concentração) a um social democrata alemão em pleno Parlamento Europeu. O clímax é atingido quando Moretti personifica o primeiro-ministro perante o tribunal que o condenou a sete anos de prisão e recusa cumprir pena, evocando que a opinião do popular, que o elegeu, é a única válida para si.
“O Caimão” foi realizado após o envolvimento de Moretti, em 2002, numa acção da Esquerda Democrática. Insatisfeito com o facto desta não desafiar mais abertamente o governo, Moretti passou à crítica e integrou um movimento de artistas e intelectuais que organizaram protestos contra o “caimão”, uma das alcunhas com que Berlusconi é conhecido. Um ano depois, o cineasta iniciou a rodagem do filme, estreado duas semanas antes das eleições que afastaram o magnata do poder político.
Assumido pelo autor como obra política, faz um balanço necessário e acutilante da inconsciência política de quase todos instrumentalizada pelo instinto predador de poucos, que resultou na “berlusconização” da sociedade italiana, e afirma-se como de resistência. Com excelentes desempenhos - de Silvio Orlando e Jasmine Trinca sobretudo - a obra procura equilibrar o registo confessional das cenas familiares, com que Moretti se impôs nalguns das suas criações mais conseguidas, e o da sátira política, como em “Palombella Rossa”, em que já deu prova de maior fôlego. Este equilíbrio é, porém, conseguido fragilmente e resulta pouco imersivo. Se Orlando logra envolver-nos humanamente, o registo da passagem de Berlusconi pela política italiana é fragmentário, alternando momentos fortes, documentais, com outros menos conseguidos.

Climas


Sob um sol intenso Bahar espera, paciente, enquanto o companheiro fotografa ruínas. Isa pergunta-lhe se está bem. Responde que sim mas as lágrimas acabam por brotar, denotando a crise na relação em vias de desagregar-se.
O cineasta turco Nuri Ceylan inicia a quarta longa-metragem com a exposição, no registo não introspectivo que atravessa toda a obra, da separação de um casal, e através de uma sequência violenta que marca a ruptura. Depois, num movimento subtil, o cineasta turco desloca o professor universitário para a sala de aulas em Istambul, através da projecção das imagens das ruinas fixadas por ele. O raccord está em sintonia com o movimento de Isa em direcção a uma outra mulher. Ao Verão sucedeu o Outono, que, em tons de cinzento, apaga a cidade e marca o regresso a uma ligação fortuíta, sob o signo do desejo. Nova sequência, predatória, fixa o jogo entre um homem que não se quer comprometer e a mulher casada que estende a teia da sedução e acaba dominada pelas expectativas. É ela quem revela a Isa que Bahar partiu sem aviso há meses. Espicaçado, inicia outro movimento. É Inverno, a neve cai sem interrupção numa cidade que em nada corresponde aos destinos com sol onde Isa planeara fazer as férias de Inverno. Mas o sentido da caça impõe-se. É preciso recuperar a influência sobre Bahar. Fá-lo. E um novo movimento desponta, nesta coreografia da incapacidade de relacionamento do homem.
Nuri e a mulher, Ebru, são os protagonistas desta obra distinguida com o prémio da crítica no último festival de Cannes. Rosselini e o seu “Viagem a Itália” tem sido a referência citada para enquadrar os silêncios com que Ceylan fixa a ausência de intimidade e partilha entre um casal. Do Verão ao Inverno, a sucessão de estações define a temperatura da relação ao centro. Mas se o silêncio é comum à obra do mestre italiano e ao do promissor realizador turco – característica de um certo “cinema moderno” quando este assume a fixação do tempo, de crise - o certo é que não há revelação em Ceylan. Apenas constatação e a redenção impossível, encerrado que fica o homem nessa condição em que os homens são de Marte e as mulheres de Vénus.